A PESQUISA


:: DOHTER

Foto: Loli Menezes
Fundadora do Magdalena Project em 1985, a diretora galesa Jill Greenhalgh esteve no Brasil em 2012 para participar da terceira edição do Vértice Brasil. Conduziu a proposta brasileira da pesquisa chamada “Dohter”, que integra um projeto de colaboração internacional de maior amplitude, iniciado em agosto de 2011 no País de Gales.

O trabalho de laboratório foi realizado em Florianópolis, conduzido pela diretora galesa, com a participação das atrizes Marisa Naspolini, Gláucia Grigolo, Barbara Biscaro, Jussara Xavier, Diana Gilardenghi, Heloise Baurich Vidor, Margarida Baird, Loli Menezes, Maria Luisa Porath e Sandra Knoll. 
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Foto: Gerusa Ansiliero
Jill Greenhalgh vem buscando o conceito de uma futura performance, e de um formato diferenciado, a partir do tema “daughter”: a filha que sou/fui, a filha que tenho, a filha que quero/não quero. Durante o processo criativo, a proposta foi investigar algumas dessas questões também através de depoimentos e registros de mulheres de idades mais avançadas, mulheres com as quais as performers participantes mantinham vínculos afetivos (mãe, amiga, avó, tia, irmã).

Foto: Gerusa Ansiliero







Veja também no Blog do "Vértice Brasil" o texto "Dohter and Dohter", escrito por Gláucia Grigolo relatando esta experiência como atriz em Florianópolis, e também como expectadora em Brasília, durante o encontro "Solos Férteis". 

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Veja abaixo o vídeo com a performance de Gláucia Grigolo que resulta do processo vivido em "Dohter":



:: DIÁRIO DO MOVIMENTO DO MUNDO 1

Depois da participação em “Dohter”, a pesquisa esteve voltada para a construção dramatúrgica, a partir de depoimentos e textos escolhidos, bem como para a construção de cenas e situações. 

Nesta etapa do processo, a condução foi da diretora argentina Ana Woolf que guiou a construção espetacular. Todo o material criado nestas etapas serviu como base para a montagem do espetáculo solo, que estreou em 25 de julho de 2013. 

O título foi criado a partir da inspiração gerada pela leitura da obra “A elegância do ouriço”, de Muriel Barbery. Assim que tomou contato com este livro, a atriz Gláucia Grigolo imediatamente começou a esboçar uma ideia de espetáculo solo, que tem o universo feminino como motor inicial. No livro, a zeladora de um prédio e uma jovem moradora contam histórias relacionadas às suas vidas.



A pesquisa direcionou a construção da personagem para uma sapateira, uma mulher que gosta de cuidar dos sapatos. Quando jovem era engraxate...

Mãe, você lembra qual a cor do seu primeiro sapato?

Com “Dohter” a conexão foi imediata. Houve estímulos para a inclusão de histórias vividas, ouvidas ou inventadas, como também a observação de outras histórias correndo num mundo paralelo. 

Mais do que um resultado espetacular imediato, a proposta desta pesquisa foi investir na possibilidade de uma experiência singular que permitiu encontrar uma linguagem a partir do tema proposto na oficina e abrir perspectivas de novas parcerias e colaborações artísticas. Ana Woolf chegou para cumprir esta tarefa.


:: DRAMATURGIA


Lenita recebe o público. Ouve-se a música "Los caminos de la vida", cantada por Vicentico. Tudo parece um ambiente de festa. Terminando de colocar algo em uma caixinha de madeira que está sobre o rádio, é surpreendida pela entrada do público.

Lenita: Entrem, entrem! Eu estava esperando vocês. Já estou terminando! Entrem! Que bom que vieram … tô acabando … ah, ah… quem sabe… não? Ah… (Para um espectador quando olha para seus sapatos) Não!, Senhor, por favor, onde já se viu tanto descuido!  Não posso falar com você nem um minuto sem que seus sapatos me roubem a atenção o tempo todo.  Peço por favor (estendendo a mão) estarão em boas mãos, não se preocupe. Sim, a senhora também, se quiser aproveitar…. Ainda temos tempo. Ah! E o senhor também... por favor… se a senhora quiser aproveitar… (E assim continua enquanto entram todos os espectadores)

Quando todos terminam de entrar, retorna ao seu trabalho:

Vou morrer… mas não se preocupem.  Farei com alegria. E não há nada que vocês possam fazer a respeito. É assim… é igual a história da abelha rainha.

Black out

Voz de mulher: Mãe, você lembra qual a cor do seu primeiro sapato?
Canta a música

Quando eu vejo uma criança bem sapeca, eu me lembro que eu também já fui assim, por minha causa o papai ficou careca e a mamãe ficou velha depressa por causa de mim.

LUZ

Engraxate: Quando eu era criança meus sapatos nunca serviam, faziam bolhas de um rosa vivo nos calcanhares. Não sei, não me lembro se eles eram muito apertados ou eram grandes demais. Quer lustrar moço?

Cantarola: "O papai comprou pra mamãe usar um chicote de amargar. Com o tal chicote dei tanto pinote que aprendi dançar um xote".



Mãe, você lembra qual a cor do seu primeiro sapato?

Enquanto muda para Lenita:

Lenita EM TRANSPARÊNCIA
O importante não é morrer e nem em que idade se morre, é o que se está fazendo no momento em que se morre. Aprendi que a vida é uma, ser jovem enquanto velha, velha enquanto jovem. Quando uma pessoa vive de verdade, todos as outras também vivem.

Música dentro da sapataria 'Los caminos de la vida..."

Lenita entra com calor. Carrega uma pilha de livros misturados com sapatos.

Olá León! Tudo bem? Olha só o que eu achei ! A última edição do… (vê o público e sorri) Ah! Vocês estão confusos, né? Não sabem quem eu sou... Sim quem eu sou? Não sabem se sou uma sapateira, ou uma bibliotecária... Uma colecionadora de sapatos ou de livros…. Não precisa muito não… sou uma sapateira que lê. Minhas duas paixões (mostra os sapatos e os livros). Eu poderia dizer que os sapatos me dão de comer. Sim, poderia dizer isso. Os livros também... alimentam minha alma, minha memória. É isso. Agora vocês já conhecem o meu mundo.

Ah! Ele é Leon, meu gato. Se chama assim por causa de Tolstoi. A primeira se chamava Karenina por causa de Ana, mas eu chamava de Kare, com medo de que me desmascarassem. A minha mãe falava assim: um lugar pra cada coisa e cada coisa em seu lugar. Sapateiro com sapatos... professor com seus livros.

Se não a pessoa se torna muito pretensiosa e tudo termina mal. Como minha irmã Elisa… (fica um pouco pensativa, na dúvida se vai contar ou não esta história…) enfim… a vida… Então os livros são meu mundo secreto. De adulta minha única companhia… com Leon, claro! Me acostumei a estar sozinha, a conversar com Leon e até com sapatos… às vezes me descubro inventando histórias…

Na nossa casa ninguém conversava. As crianças berravam, e os adultos se ocupavam de suas tarefas como se estivessem sozinhos. Comíamos o suficiente para matar a fome, embora frugalmente, não éramos maltratados, e nossas roupas de pobres eram limpas e solidamente remendadas, de tal modo que embora pudéssemos nos envergonhar, não sofríamos de frio.

Aos 12 anos comecei a trabalhar como engraxate e me disfarcei de menino, assim ninguém me incomodava na rua... 




2 comentários:

  1. Depois de ver um ensaio esse final de semana, de presente de Natal antecipado da Ana e da Gláucia, ficaram várias impressões: alegria, alegria, de uma franqueza cheia de ternura, mulher - menina - velha que olha pra mim e repara em meus sapatos, repara em minha vida; simplicidade e colorido, vidas transformadas em sapatos que se transformam em nova vida, a vida secreta desses objetos que nos carregam pelo mundo afora; e disso tudo, um retrato de um gato querido, um livro na cabeceira pra espantar a tristeza, um projeto que já nasceu pra mudar vidas...comemoro com vocês essa linda parceria Brasil-Argentina! Glau e Ana, muito obrigada! Muchas Gracias!

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  2. Parabéns Gláucia e Ana! Só de acompanhar aqui já estou curioso para ver o trabalho

    Abração,
    Dani

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